Essa é uma história verídica, a minha história. Daria um filme de Almodóvar ou talvez Tarantino, mas acredito que possa servir para ensinar algo ou mesmo entreter. Mas o que mais escuto ao compartilhá-la é: nem tudo é o que parece.

Sou uma pessoa singular. Quem não é, não é mesmo? Mas eu tenho certas características que me distinguem da maioria, e por causa delas eu talvez não devesse estar mais aqui, na terra dos viventes. Exagero? Bom, você vai julgar. Me deixe contar um pouco da minha história.
Sou um adicto. Isso significa que, em fases bem iniciais da minha vida, algo atrapalhou meu desenvolvimento psíquico, quando passamos a ter consciência do mundo a nossa volta e nos percebemos parte de algo maior. Um adicto tem a tendência a se enxergar no centro do universo, e assim egocêntrico, busca satisfazer suas necessidades não considerando as de mais ninguém. Essa busca é obsessiva, e quando há uma obsessão por algo, ela se torna uma compulsão. Em geral, nada é capaz de satisfazer essa compulsão, e isso nos leva a buscar algo que altere nossa mente e nosso humor. Essa acaba sendo a obsessão e compulsão definitiva para nós: as drogas.
Drogas podem se apresentar de várias maneiras. Álcool, maconha, cocaína, crack, drogas sintéticas, LSD, heroína e variantes. Mas não importa a qual ou quais você tem acesso, você vai brigar por elas. Elas são a razão da sua vida, o centro da sua existência.
Passei por várias fases no uso de drogas. Desde fumar maconha na faculdade e me embebedar nas festinhas até buscar cocaína para injetar e a derradeira, fumar crack sozinho dentro de casa após ter causado um divórcio, definhando até perder 30% do meu peso corporal. Passei por 3 internações em um hospital psiquiátrico, quase não consegui defender meu mestrado e quase perdi um emprego público por faltas.
Existem várias razões que podem ser apontadas para esse uso abusivo. Por ser gay, nunca tive problemas com minha família, uma boa família que sempre me apoiou. Porém, tive uma crise religiosa por ser cristão, achando que iria para o inferno, busquei ser “curado” em uma igreja evangélica renovada. Acabei conhecendo quem se tornaria minha esposa, minha melhor amiga que, ciente da minha orientação, acreditava que Deus havia me mudado. Bem, eu também acteditava nisso. E anos depois foi ela quem reconheceu que eu estava muito pressionado, e saiu de casa com uma única exigência: que eu fosse feliz realmente.
Tive outro casamento depois de mais duas recaídas, sempre salvo por uma internação e a ajuda de um grupo de homens e mulheres capazes de me ajudar a reconhecer os sinais da doença e dispostos a me ajudar a qualquer hora e em qualquer circunstância. Eles me ensinaram quase tudo o que eu sei sobre mim.
Casamentos acabam por diversos motivos, e o meu segundo acabou porque, pelo desgaste natural da relação que nós não soubemos administrar, tivemos uma idéia deveras estúpida: por permissão mútua, acabei tendo liberdade de me envolver com quem quisesse. Não preciso nem dizer que deu errado né? Alguém obsessivo e compulsivo com aplicativos de sexo na mão e a liberdade de frequentar saunas gays? É só pensar em crack: agora transforme essa substância em pessoas. É a mesma coisa. No fim, ele não suportou o abandono, eu me sentia abandonado por outros motivos e mais esse relacionamento acabou.
Agora me deixem falar um pouco sobre resiliência: todas as pessoas admiradas por essa características pensaram sim em desistir. Elas queriam muitas vezes estar mortas. Não se enganem: o tal do “forte” é aquele que reconheceu todas as suas fraquezas e decidiu que seguiria em frente com elas. Me lembro bem de uma oração que fiz logo após o meu primeiro divórcio: “Deus, se você vai me mandar para o inferno por ser gay, acho melhor do que me mandar para o inferno por ser um viciado. Eu não vou morrer assim.” Em geral a gente tem medo e vai com medo mesmo, está fraco e vai mais devagar, mas segue. E não se é nenhum herói por causa disso. Outras pessoas tem outros problemas que para elas são tão graves quanto o seu.
E assim eu sigo, vivendo um dia de cada vez, uns dias mais difíceis, outros muito alegres. E para terminar uma história tão pesada, para você que gosta de finais felizes (embora a vida continue, não é o final ainda) aí vai.
Me casei com um cara muito bacana, que passou por coisas terríveis também, mas de outra forma. Acho que pessoas com cicatrizes se entendem, e no nosso caso a alegria é prioridade. Três dias por semana, a nossa filha (filha biológica do primeiro casamento dele) faz a alegria da casa. Minha mãe de 81 anos também mora com a gente e faz tudo ficar mais leve. Ainda 4 gatos e 1 cachorro pug preto completam a população da casa.
Minha recuperação demanda tempo, umas 10 horas por semana, e é para a vida toda. Meu marido chama isso de investimento, e fala que a recuperação é para toda a família, não só para mim.
Minha ex-mulher se casou e foi para o interior. Tem uma filha de 8 anos. Seu marido é uma simpatia e somos muito amigos.
Mas o mais importante: estou vivo, estou limpo só por hoje (cabe a mim fazer todos os hojes assim) e sei que Deus vai me receber em seus braços quando eu morrer, porque Ele é meu Pai e me ama e ninguém me convence do contrário.
E TODO ADICTO PODE SE RECUPERAR SE TIVER ESSE DESEJO. Isso é uma verdade absoluta. Se você conhece alguém que precisa e deseja se recuperar, é só me chamar que eu posso apresentar uma turma muito especial.
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