
Com a morte recente de Stan Lee, o criador de muitos personagens e presidente da Marvel, pensei em contar aqui um pouco do que aprendi com sua obra e de outros cartunistas.
Sempre gostei de histórias de super-heróis. DC, Marvel, quadrinhos da Disney, todos sempre povoaram a minha imaginação. Há uma necessidade enorme em cada um de nós de saber que há alguém mais forte, que pode nos proteger. Pode ser também que queiramos ser heróis, ou mesmo vilões. Não é a toa que os filmes lançados nos últimos 20 anos dos grandes estúdios fizeram tanto sucesso. Aquilo não é totalmente ficção.
Quando penso nisso, me ocorre uma questão: qual é a diferença entre um herói e um vilão? O que define um ou outro? Ambos têm habilidades ou inteligência para fazer coisas extraordinárias. Alguns até foram amigos no passado. Ambos passaram por situações horrivelmente traumáticas. O que os diferencia tanto?
Um vilão responde de maneira diferente de um herói aos estímulos. O Duende Verde perdeu o pai tragicamente, assim como o Homem Aranha perdeu o tio. Mas o Duende Verde culpa o Homem Aranha pela morte do pai, enquanto o Homem Aranha se culpa mas resolve não deixar mais aquilo acontecer. Batman viu os pais serem assassinados e se tornou alguém sombrio, mas aprendeu a usar sua escuridão para combater o crime. O Coringa enlouquece por perder a mulher e o filho no parto e depois ser totalmente desfigurado em um acidente. Acaba se tornando talvez o maior psicopata das histórias em quadrinhos. Super Homem perde todo seu povo, cultura e planeta (pior: nem os conheceu) mas decide abraçar e proteger o planeta que o acolhe. Lex Luthor não se conforma por sua fortuna não poder lhe dar os poderes do Super Homem e se propõe a combatê-lo.
Pra mim é muito clara a diferença entre uns e outros: ganhar ou perder a luta contra si mesmo. E a dor é um fator determinante nisso, pois é o gatilho das coisas mais profundas que existem em cada um. Os vilões são aqueles que enxergaram que a vida foi dura demais com eles, e eles precisariam dar o troco. Dar, até a quem não tem nada a ver com a história, a retribuição por tudo o que sofreram. Os heróis pegaram essa dor, entenderam tudo o que os cercava, trabalharam e devolveram ao mundo a justiça, em contrapartida à injustiça que sofreram.
Em meu processo de crescimento pessoal, em vários momentos tive que encarar uma escolha parecida. A vida acontece conosco, e estejamos preparados ou não, tragédias acontecem. Podemos adoecer e perder tudo, nos sujeitamos a pessoas manipuladoras e cruéis, perdemos entes queridos e tantas outras situações que parecem mais do que podemos suportar. Cada um sabe onde o calo aperta, cada um com seu fundo de poço, e é muito grande a tentação de nos tornarmos vítimas.
Fiz muito esse papel. A vítima é apenas uma vítima, ela não pode fazer nada. Ou pode retribuir na mesma moeda, passar para a frente os “favores” que recebeu. A vítima começa a fazer mais vítimas, e assim se torna um “vilão”. O caminho mais longo e mais trabalhoso, é o de entender que coisas ruins acontecem, e não há culpados (OK, algumas vezes há), mas não se anda para a frente focando nisso. É aí que se descobre que aquilo que dói tanto é uma fraqueza, que deve ser reconhecida, e a situação superada por meio de aceitação e muitas vezes perdão (a si mesmo ou ao outro). Não para ser bonzinho, mas por necessidade, por não querer que doa mais. Por querer ter uma vida plena. Então você trabalha duro naquela situação e ganha resiliência. Ganha força para seguir. Descobre muitas coisas sobre si mesmo. Assim nasce um “herói”.
Agora vamos admitir: tem muita gente com a cabeça “sambada” por aí. Talvez tenhamos um excesso de “vilões”, e muita gente magoando os outros, prejudicando, roubando, matando, fazendo coisas que não têm uma gota de empatia. E nossa tendência é nos revoltarmos, e de fato é revoltante. Mas vilões são sempre vítimas que não conseguem sair dessa posição, e com isso fazem mais vítimas, e tudo se torna uma bola de neve. E temos a impressão de que o mundo se torna cada vez mais um lugar pior, porque o mais fácil é ceder ao mal, seguir o caminho que a dor e o egoísmo nos mostram. Ser sua melhor versão dá trabalho, e machuca talvez ainda mais do que você já está machucado antes de melhorar.
Esse não é um texto de auto-ajuda: é a exposição do que eu vivo. Fui um vilão por muito tempo, e para reverter o processo foi doloroso, dói até hoje. Tem muito aqui ainda a ser trabalhado. Mas quando o Super Homem, o Homem Aranha e o Batman me ensinam a retidão e a vontade de ajudar os outros mesmo que minha vontade seja contrária, eu sei que começarei meu dia engolindo meus moderadores de humor e com uma angústia monstruosa no peito, mas terminarei com a cabeça no travesseiro e a consciência leve. Pois o Duende-verde, o Coringa e Lex Luthor podem ser mais ricos, interessantes e descolados, mas depois de fazerem milhares de vítimas, eles acabam no lugar de onde partiram: um lugar de dor e insatisfação.
Créditos da Imagem: DC Comics e Warner Bros. Entertainment